O contraste no acesso aos serviços públicos entre as zonas urbanas e os bairros periféricos dos projectos habitacionais, com destaque para as classificadas centralidades, está cada vez mais visível. Quanto mais surgem projectos habitacionais, mais aparecem musseques a volta dos mesmos. Em muitos casos, os projectos públicos de habitação são construídos em localidade onde habitam populares que, apesar de verem ser construídas infra-estrutura básica, continuam a ser excluídos, permanecendo os mesmos problemas que afectam os bairros marginalizados desta Angola adentro.
Texto e Fotografias: Simão Hossi
O bairro Mayé Mayé e a vila Verde Kativa, ambos no novo município do Sequele, província do Icolo e Bengo, são duas zonas periféricas que apresentam diferenças profundas quando comparados com a vizinha centralidade que dá o nome ao município.
A vila Verde Kativa, bairro de construção dirigida que dista cerca de três quilómetros da centralidade do Sequele, começou a receber os primeiros moradores em finais de 2015. Já o projecto urbanístico Mayé Mayé, a cerca de quatro quilómetros da sede do município do Sequele, recebeu os primeiros moradores em 2017.
Não há energia elétrica pública na vila. A vida é feita às escuras. Uma empresa privada instalou um posto de transformação e comercializa a energia a preço especulativo

Delfina Bundo
Delfina Bundo, de 48 anos de idade, chegou à vila Verde Kativa em 2016 proveniente de Cacuaco. Tem 16 crianças em casa, entre os filhos biológicos e sobrinhos, e conta que, quando chegou ao bairro, o único local de fornecimento de água potável era no campo do Benfica, a que servia para abastecer o bairro inteiro. Mas, pouco tempo passado, o campo foi confiscado pelo Serviço Nacional de Recuperação de Activos (SENRA) da PGR alegadamente por pertencer a alguém suspeito de corrupção. Delfina recorda que foi naquela altura que construiu um tanque de água no seu quintal. Para abastecer, precisava de 36 mil Kwanzas para abastecer o tanque de água, mas actualmente não consegue por limitações financeiras. Em alternativa, diariamente compra dois bidões de 20 litros de água cada para consumo. Paga 100 Kwanzas pelo bidon. É assim que todos os moradores fazem todos os dias.
Não há energia elétrica pública na vila. A vida é feita às escuras. Uma empresa privada instalou um posto de transformação e comercializa a energia a preço especulativo. O contrato para fornecimento custa 180 mil Kwanzas e mensalmente tem de se pagar sete mil, mas ascende a nove mil por atraso no pagamento. Mas há quem pague 15 mil Kwanzas pela eletricidade privada. A explicação para a diferença é de que varia em função da dimensão da casa e respectivos eletrodomésticos.
“Estamos mesmo assim desde que o bairro nasceu. Cada vez que as autoridades da comissão de moradores e administração distrital, que hoje é município do Sequele, vêm para a reunião, estamos a pedir mesmo estas coisas para que Estado nos apoie com escola, hospitais, canalização de água e luz, mas até aqui não temos respostas e nunca nos deram alguma informação sobre quando vão resolver estas situações. Só está mesmo assim parado”, lamentou Delfina.
Artur Kapunga Kumbi Walila é outro morador da vila Verde Kativa. Reside na localidade desde 2016, ano em que Delfina chegou na área, proveniente de uma zona de risco no bairro Cerâmica, no município de Cacuaco. Em 2007 viu a sua casa inundada pelas águas das chuvas e viu-se forçado a adquirir um terreno na vila, onde construiu a nova moradia. “Quando cheguei aqui era uma zona verde e literalmente mata”, recorda.
Kumbi Walila também mandou construir no seu quintal um poço para armazenar água. Para abastecer, paga por um camião-cisterna de água entre 40 mil a 50 mil Kwanzas
Para este morador, além das preocupações da luz e água, o bairro enfrenta também problemas sérios de saneamento básico, com amontoados de lixo nas ruas, falta de rede telefónica. Apesar de estar a 200 metros do campo de futebol do Benfica, infraestrutura que está equipada com água canalizada e rede elétrica pública, “não está a ajudar a comunidade desde que passou para a nova gestão”, por isso apela que se faça a “partilha da água com uma mangueira” para beneficiar os moradores.

Kumbi Walila
Como alternativa, Kumbi Walila também mandou construir no seu quintal um poço para armazenar água. Para abastecer, paga por um camião-cisterna de água entre 40 mil a 50 mil Kwanzas. O custo mensal começa a ser insuportável, à igualdade da vizinha Delfina, por isso a qualquer instante deixará de encher o tanque para recorrer aos bidões de 20 litros diariamente.
Há muitos moradores a passarem fome, com famílias inteiras a recorrerem ao lixo da vizinha centralidade do Sequele para vasculhar à procura de algo para comer e, assim, sobreviver mais um dia. Já há quem praticamente viva ao pé dos contentores de lixo. Tão logo chegue alguém com um saco para deitar, recebem-nos das mãos para verificar o conteúdo. Pedem encarecidamente, às vezes aos prantos, os ofereçam comida. Houve altura em que entravam pelos prédios a bater as portas dos apartamentos a pedir qualquer coisa para matar a fome antes que ela lhes mate.
Kumbi Walila acredita que a situação social e económica do bairro vai melhorar com a elevação da Centralidade do Sequele a município.
“A miséria aqui na vila Verde Kativa é constante. Estamos a alimentar-nos muito mal. Actualmente, graças a Deus que meteu lá chuvas, tem kissaka e as crianças estão a se alimentar das kissakas, mas existem algumas casas que desde manhã até ao pôr-do-sol nem um copo de fuba têm nas suas casas. Gostaríamos que o governo baixasse o preço da cesta básica”, concluiu.

Madalena Pedro
Madalena Pedro é nova no bairro, onde chegou a três meses, mas já está cansada dos problemas encontrados. Paga 15 mil Kwanzas mensalmente pela energia privada, dada a dimensão da sua casa. Compra água aos bidões de 20 litros e diariamente desembolsa mil Kwanzas por causa do número do seu agregado. Visivelmente aflita com a situação, da qual estão incluídas as dificuldades de comunicação telefónica na zona, apela às autoridades administrativas do município do Sequela a resolverem os problemas que assolam a comunidade.
Paulo Domingos, natural da província do Bié, veterano no bairro, onde chegou em 1983, conta que deixou a sua terra natal por causa da guerra. O ex-militar do batalhão BP2 da 7.ª brigada de tanques, foi destacado para Luanda naquele ano, mas antes passou pelas províncias de Cabinda, Zaire e Kwanza Norte. Está reformado. Na zona, trabalhou como segurança de uma antena da empresa estatal Angola Telecom e nos tempos livres começou a dedicar-se à actividade agrícola.

Paulo Domingos
O ancião do bairro viu as lavras a serem substituídas pelas casas que se foram erguendo ao longo dos anos, viu também a Centralidade do Sequele a ser construída e lembra-nos que os primeiros trabalhadores chineses que chegaram à zona o procuraram para guardar materiais de construção nos contentores da Angola Telecom, da qual continua como segurança.
Paulo Domingos perdeu a conta do número de problemas que a comunidade enfrenta. Também perdeu a conta do número de cartas que enviaram às autoridades administrativas, todas sem respostas. Lembra-se dos principais problemas: falta vias de acesso, posto médico, escolas primárias, lojas de registos, serviços notariais e bancários.
É o conselheiro do bairro e continua a apelar às autoridades administrativas e ao presidente da República para que olhem para as dificuldades que os moradores passam. Também tem esperança que virão mudanças com a elevação do Sequele à categoria de município e a transferência para a província do Icolo e Bengo.
“Nós, aqui em casa, somos seis pessoas e tenho de ter três bidões de 20 litros semanalmente, o que quer dizer que mensalmente temos de ter 12 bidões de água. É só fazerem as contas, a 500 quanto é que me dá mensalmente no gasto de água”
Enquanto isso, Eliza Joana José Mário, residente na quadra A do Mayé Mayé, para onde se mudou a um ano e quatro meses proveniente do município de Cacuaco sede, conta que o serviço de eletricidade é pré-pago. Reclama da água fornecida pela EPAL EP por não ter qualidade para consumo humano. Queixa-se que causa dores de barriga e disenterias. Ela e a família deixaram de consumir, optando pela compra semanal de 60 litros de água filtrada. Cada garrafa de 20 litros custa 500 Kwanzas, o que corresponde a um consumo de água no valor de 12 mil Kwanzas por mês somente para beber.
“Nós, aqui em casa, somos seis pessoas e tenho de ter três bidões de 20 litros semanalmente, o que quer dizer que mensalmente temos de ter 12 bidões de água. É só fazerem as contas, a 500 quanto é que me dá mensalmente no gasto de água. Porque a água da EPAL só serve para o banho, cozinha e lavar. Quando não temos possibilidade para comprar a água, usamos a lixívia e a ‘certeza’ para tratar a água”, desabafou.

Eliza Joana José Mário
A moradora lamenta estar rodeada de vizinhos com muitas carências e dificuldades para pagar as mensalidades da água da EPAL de cerca de três mil Kwanzas. A empresa estatal tem efectuado cortes no abastecimento pela falta de pagamento, e a solução dos vizinhos tem sido acarretar água da casa de vizinhos com contas regulares, uns cobrando um valor simbólico e outros ajudando os vizinhos.
Eliza lamentou também a ausência de outros serviços públicos. O projecto urbanístico Mayé Mayé tem apenas duas escolas públicas do ensino primário, insuficientes para atender a demanda, diz a moradora, que lamenta ainda o facto de terem deixado centenas de crianças fora do sistema de ensino. Os moradores dependem dos serviços que a Centralidade do Sequele tem e isso faz com que os custos destes serviços sejam ainda mais caros em comparação com os moradores da centralidade. Acresce o custo de vida a necessidade de muitas deslocações do bairro até a sede municipal e vice-versa.
Dilson António tem 28 anos de idade, pedreiro de profissão e mora na quadra H do Mayé Mayé desde 2003, ou seja, antes de ser erguido o projecto habitacional. Paga apenas mil Kwanzas de energia eléctrica por ter poucos eletrodomésticos em casa. Mas está a pagar uma dívida de 17 mil do inquilino que tinha em casa.
A resposta da EPAL foi dada com a construção de alguns chafarizes no ano passado que jorraram água por pouco tempo
O sector mais crítico do Mayé Mayé é o 3, um outro lado do Mayé Mayé, onde desde 2010 reside Helena Afonso. Ali não tem água, luz, escola nem hospital. Helena diz que os moradores do sector já se dirigiram até a EPAL e ENDE, responsável pela distribuição da eletricidade, para quem estes fornecessem os serviços ao sector. A resposta da EPAL foi dada com a construção de alguns chafarizes no ano passado que jorraram água por pouco tempo. Nesta altura, os chafarizes não saem água. A água consumida pelos moradores é proveniente do condomínio, nome dado aos edifícios recentemente construídos no sector 3 do bairro Mayé Mayé.

Helena Afonso
A moradora compra diariamente três bidons de água, 50 Kwanzas por cada 20 litros. Reclamar pela energia eléctrica no sector é visto como algo luxuoso, porque a prioridade, segundo Helena, é a água, os serviços de saúde e a educação. Depois preocupam-se com a energia elétrica e transportes. Todos os serviços concentrados na distante Centralidade do Sequele. Domingos Pedro, 21 anos de idade, vivia no Belo Monte, município de Cacuaco, de onde saiu a sete anos para fixar-se no sector 3 do Mayé Mayé. Destaca que quando sai água nos chafarizes vem suja, logo, imprópria para consumo humano.
Contactamos a comissão de moradores do sector A do bairro, que responde pelas quadras A, B, C e D, compostas por 288 casas da tipologia T2 e T3 geminadas. Valter Matias, vice-presidente do conselho fiscal, estima existir 11 mil moradores. Valter vivia na encosta da Boavista, perto do ex-mercado do Roque Santeiro, sendo um dos beneficiários do processo de desalojamento no Sambizanga para dar lugar ao projecto de requalificação daquela municipalidade. Chegou ao Mayé Mayé em 2017, data em que o projecto urbanístico começou a receber os primeiros moradores.

Valter Matias
Valter confirma que já existiam moradores antes do projecto, que eram camponeses e foram afastados para além de onde está as residências. Para o responsável, os serviços públicos de água e energia funcionam normalmente. “A água é razoável, temos um sistema canalizado nas casas que está a ser reabilitado para aumentar a capacidade que o Mayé Mayé precisa, visto que temos agora os edifícios, para que a água chegue no 4° andar onde tem as pessoas. A energia é pré-pago e o morador paga o que consome. Não temos problemas com energia, o problema é com a iluminação pública”, frisou.
O morador do Mayé Mayé paga mensalmente 3.029 Kwanzas de água à EPAL, segundo o responsável da comissão de moradores. Diz estar preocupado apenas com o acesso e os transportes públicos na zona. Os principais meios de transportes informais sãos os chamados kupapatas. Confirmou haver somente duas escolas primárias e nenhum posto de saúde público.
“A falta de bancos, custos dos transportes, vias de acessos, serviços de notariado e registo civil, serviços de saúde, deixa-nos dependentes da Centralidade do Sequele”, lamentou.
Já o coordenador do quarteirão H25, Jorge António da Cunha, faz parte dos primeiros moradores do território antes de ser o actual Mayé Mayé. Chegou à zona em 2010, vindo da Caop, no município de Cacuaco. O responsável diz que já tinham sido reassentados, mas que, com o evoluir das obras do Mayé Mayé, foram afastados para a zona do quarteirão H25. Nesta altura estão empregados nas escavações para levar água aos moradores, garantiu o responsável.
Enquanto decorria a nossa reportagem na comunidade, o responsável da comissão de moradores levava 500 metros de tubos e orientava os trabalhadores que estão a escavar a zona onde vai passar a água, pelo que Jorge da Cunha acredita que a falta de fornecimento de água é um problema com o seu fim a vista.

Presidente da Comissão de Moradores do Sector 3
Para o coordenador deste quarteirão, a sua comunidade é camponesa e vive muitas dificuldades, muito mais em relação a zona urbanizada do Mayé Mayé. Nesta altura a comunidade vive de água que acarretam nos edifícios e residências da zona urbanizada, assim como também de camiões-cisternas que tiram água do chafariz do Kifangondo.
A preocupação da fome no seio da comunidade, número de crianças fora do sistema de ensino, vias de acessos, e a construção de uma unidade de saúde para ajudar a tratar da saúde dos moradores constituem as principais preocupações do coordenador.